24.9.07

Tens de falar com o Zé Soeiro!



Entrevista com José Soeiro, estudante, político, activista

De um encontro em Serralves (Porto) saiu esta longa entrevista. É tão fácil falar com ele! José Soeiro já é conhecido no Porto. Demasiado jovem para que se lhe adivinhe a idade, anda sempre de um lado para o outro.
Gosta de ser o Curinga no teatro fórum. Dali retira outras armas para o argumentário político. Ele impressiona pelas qualidades humanas únicas. É militante do Bloco de Esquerda e finalista de Sociologia da Universidade do Porto.
Um dia vamos ouvir falar dele, porque não é um jovem político, nem está a dar os primeiros passos na arte de fazer os outros felizes.


Como é que tu foste parar à política?

Pelo facto de a minha família também ser politizada e, desde sempre, haver um pouco essa discussão sobre o que se passa à nossa volta, ajudou. Nós somos sempre socializados num determinado meio!
Na Escola Secundária António Sérgio (em Vila Nova de Gaia) foi quando começamos a fazer coisas em conjunto para mudar o que se passava em nosso redor, o que nos estava mais próximo. Nessa altura fizemos uma lista para a associação, comecei a estar envolvido na associação de estudantes, numa fase em que havia grandes movimentações contra a revisão curricular, o partido socialista estava no governo.
Aí começou a minha politização, por via da escola e também pelo tema da própria escola. Quando nós começamos a fazer as actividades e, nessa altura, já havia um entendimento diferente na forma de tratarmos o problema da educação. Os movimentos eram, na generalidade, contra a reforma, pela educação sexual, contra os números clausus… Nós tínhamos um discurso que era mais de questionamento sobre a escola enquanto instituição. Bastante influenciados por uma experiência com a qual eu tomei contacto que é a escola da Ponte (Vila das Aves, Santo Tirso), que é uma escola que funciona sem aulas, sem testes, sem professores… e portanto, a experiência dessa escola e o questionamento que nós fazíamos à instituição, acho que trouxe uma politização pessoal e para as pessoas que partilharam essa experiência comigo. Nós queríamos ir um pouco mais fundo nas questões e isso notava-se.

Na altura a revisão curricular impunha uma aula de 90 minutos e as coisas que se diziam eram “se 50 minutos são seca, 90 são seca e meia”, porque no fundo era aumentar um tempo de aulas que eram em si aulas que não funcionavam, que não faziam sentido. Ou seja, no fundo era preciso questionar a seca que são os 50 minutos. Não é simplesmente mudando o tempo das aulas, mais exame aqui ou acolá… se não mudarmos a escola, não conseguimos ser felizes nesta instituição.

Fui-me chegando a tudo o que mexia e me interessava. Estive com os “Antípodas”, que era um movimento anti-praxe, com as Panteras Rosa, com o Bloco de Esquerda. Eu acompanhei o nascimento do Bloco com quinze anos. O facto do Bloco ser uma esquerda nova que tentava agrupar pessoas que vinham não só de diferentes correntes políticas, mas também de diferentes movimentos sociais. O facto de o Bloco ser um espaço de convergência dessa gente toda acho que ajudou muito na minha formação e despertou a minha consciência para uma quantidade de questões que existiam: desde as questões do trabalho, às questões do género, LGBT, ecologia…

A tua licenciatura ajuda? (está a licenciar-se em sociologia)

A minha licenciatura ajuda, mas eu inicialmente até queria Português-Francês, que eu tinha uma paixão muito grande pelo Francês. Pela música francesa, pela poesia francesa… aliás, eu sempre ouvi muita música francesa desde pequenino. O meu pai ouvia muita música francesa e depois eu passei a ouvir muito mais do que ele, Jaques Brel, Leo Ferré. Só que depois fui vendo os currículos dos cursos e fui achando que a Sociologia era uma coisa que me puxava mais.
Alguém dizia, que a visão que a Sociologia nos dá do mundo é uma visão que contraria as evidências, contraria o óbvio. Todos vivemos em sociedade e todos temos um senso-comum de como funcionam as coisas, a Sociologia questiona esse espaço e tenta questionar as ideias feitas. Eu acho que isso foi muito importante para mim. Depois a questão é o que é que se faz com isso e o Marx dizia que os filósofos e os pensadores já se fartaram de pensar o mundo, mas o que se trata agora é de transformá-lo. Acho que minha postura na sociologia foi um pouco essa. É preciso conhecer as coisas, mas se não se traduzir numa vida melhor. Se o conhecimento não for partilhado por quem mais sofre, que é quem menos tem acesso a esse próprio conhecimento. Se o conhecimento não for usado de forma emancipadora, para nos libertarmos de todos os poderes. O conhecimento é uma forma de libertação da opressão, penso eu.

Eu no secundário li um livro fantástico do Bourdieu que é “Os Contra-fogos”, que ele escreve na fase final da sua vida. Bourdieu é um sociólogo extraordinário, sociólogo crítico, mas que sempre manteve as regras do campo científico. Ele achava que o campo da intervenção dele era o campo científico e não o campo político e portanto intervinha com as regras do campo científico. E disse que: aquilo que os cientistas podiam fazer para mudar o mundo era intervir mesmo no campo político com as regras do campo científico. “Os Contra-fogos” são pequenos artigos sociológicos que intervêm no campo político como por exemplo: são os discursos dele de apoio às greves em 95, pelos serviços públicos, dos movimentos dos desempregados… aparentemente seria impossível haver um movimento de desempregados, porque são as pessoas menos mobilizadas, com menos identidade colectiva…
Esse livro foi muito importante e comecei a ler Bourdieu ao contrário do que é normal.

Tu fazes uma coisa muito interessante, que é usar o teatro fórum, queres explicar o que é o teatro fórum?

Cruzei-me por acaso com o teatro do oprimido. Foi quando fui fazer um intercâmbio à Irlanda e havia uma oficina do teatro do oprimido e começava com um tipo chamado Ian Brioke, que trabalha com o teatro do oprimido e com os labirintos sensoriais e ali começou a contar que o teatro do oprimido nasceu no Brasil na altura da luta contra a ditadura. É um projecto profundamente democrático, porque basicamente pretende que todas as pessoas se apropriem dos meios de produção teatral. O que o Augusto Boal diz que fazendo a história do teatro é que o teatro foi ficando sempre na mão de poucos e que o povo foi sendo submetido à condição de espectador passivo. O que ele diz é que é preciso um teatro que devolva ao povo os meus de produção teatral e em que as pessoas passem de espectadores passivos em especta-actores, ou seja, que passem a intervir na própria realidade.
O teatro fórum tem esta vantagem de misturar a política com o teatro. O teatro político não é um teatro de propaganda que diz às pessoas o que elas devem fazer e eu acho, que isto se aplica à actividade política, em geral… O teatro político é aquele teatro, que permite às pessoas definir quais sãos os seus problemas e encontrem elas próprias, as soluções para esses problemas. Augusto Boal encerra muito bem a questão do teatro fórum recorrendo a um pensamento do Che Guevara, que eu acho que devia ser válido para toda a nossa vida, que é: «solidariedade é correr os mesmos riscos», ou estar disposto a correr os mesmos riscos. Não é nós de forma paternalista dizermos que estamos solidários com estas causas e não estar disposto a ir com elas…

Sentes-te melhor na pele de oprimido ou de opressor?

Sinto-me melhor na pele de Curinga, porque fazer de opressor é extraordinário, porque normalmente, as pessoas que fazem melhor de opressores são as mais oprimidas. Porque sabem perfeitamente o que o opressor lhes faz e quais são as técnicas que ele usa. Por isso é que é muito interessante, por exemplo ver as crianças a fazerem de adultos, ou a fazer de professores, porque as crianças têm uma consciência exacta das estratégias que os professores usam para os oprimir ou para os ridicularizar ou para lidar com eles de forma paternalista. O mesmo em relação às mulheres a fazerem de homens. Chega a ser brutal, porque elas sabem exactamente o que é que ouviram e sabem como tornar a vida difícil nesse papel de homem, porque elas já passaram por aquilo.
Mas o papel que eu gosto mais é o do Curinga e porquê? Porque faz a mediação e eu acho que tenho jeito para essa mediação. Pode contudo ser um papel manipulador se as pessoas não tiverem consciência sobre o poder do Curinga, porque ele dinamiza toda a sessão e toma decisões, activa a plateia. Em primeiro lugar o Curinga tem de desenvolver capacidade de escuta e de escuta empática, escutarmos os outros e tentarmo-nos colocar no lugar deles e tentar perceber o que é que eles estão a falar. Depois uma contenção necessária para criar um espaço em que as pessoas se possam exprimir. É bom para mim, porque eu acho que as pessoas se ouvem pouco, colocam-se pouco no papel do outro e isso para mim é muito engraçado e muito importante, porque se nós queremos mudar o mundo temos de mudar com as outras pessoas e se queremos chegar às outras pessoas temos de as ouvir.

Há falta de participação política nas pessoas da tua idade?

Acho que não tem que ver com a minha idade. Se nós formos ver as estatísticas de participação política os jovens, ao contrário do que normalmente se diz, e eu fiz esse levantamento, os jovens votam tanto como os mais velhos. As taxas de abstenção dos jovens estão na média das outras faixas etárias, por isso jovens participam pouco como os mais velhos. O que eu acho que houve neste país e isso é uma coisa estranha e eu gostava de fazer esse trabalho, como é que um país que em 74 e 75 se apropriou da política e se apropriou do seu destino colectivo e como é que houve um país que fez saltar a utopia dos poemas para a exercer na rua, para ocupar fábricas, ocupar casas, para dizer não, na empresa decidimos nós… como é que essa gente que se envolveu realmente está hoje rendida ao pensamento único, a ideia de que: pá, isto não é muito bom, mas não conseguimos fazer melhor. Há uma certa geração, que fez o 25 de Abril, cujo projecto não resultou. Como é que as pessoas que viveram esse processo revolucionário deixaram morrer esse projecto e hoje estão no poder e a fazer o que nós vemos. A esquerda e o Partido Socialista, em particular. Como é que essa geração os “pachecos pereiras”, os “jorges sampaios”, “jorges coelhos”, como é que essa gente se contenta com tão pouco?
Somos um país atrasado em muitos aspectos! Perdemos rapidamente a memória do que foi esse tempo.

Porque é que te identificas com o Bloco de Esquerda?

Sinto-me identificado com o Bloco, porque com o que tem de bom e de mau, terá concerteza muitas virtudes e tantos defeitos como qualquer organização mas, eu penso que o projecto político do bloco é isto: dar expressão a esta esquerda nova em Portugal, os novos movimentos, que seja uma esquerda que responda aos problemas de hoje. Que não se renda ao pensamento único liberal, capitalista, que é a esquerda do conformismo do partido socialista. Não só do partido socialista, o situacionismo de pessoas que dizem não há nada a fazer.

Quais achas que são as lutas que a tua geração pode interpretar?

Acho que há uma luta fundamental que é a precariedade, porque isso é um ponto basilar da condição juvenil hoje. Isso como é uma regressão civilizacional tão grande em relação a todo o discurso sobre o trabalho e a todo o discurso da esquerda sobre o trabalho, que assentava na base de um trabalho para toda a vida, apesar de tudo, de uma certa estabilidade e essa mesma ser o garante de uma data de direitos sociais associados à condição do trabalhador, que foi dando conteúdo à democracia, em que todos somos iguais nas escolhas e nos direitos… portanto eu acho que a luta contra a precariedade, a luta por direitos sociais associados a estatutos profissionais de intermitência como é o caso dos trabalhadores do espectáculo e começa a ser de outros também, os séculos de lutas do movimento operário e que custaram a vida a muita gente estão neste momento a ser destruídos, porque se esta a destruir a base em que eles assentam. Hoje em dia ninguém acaba com o subsídio de desemprego, não acabam com o direito à greve, não acabam com o salário mínimo, no entanto acabam com a base na qual assentam esses direitos. Há por isto um conjunto cada vez maior de pessoas, que apesar de na constituição dizer que têm direito a uma data de direitos, não estão a aceder a esses direitos. Ninguém formula isto politicamente, mas ao generalizar a precariedade é isto que está a acontecer e estamos a voltar de outra forma ao capitalismo selvagem do séc. XIX.
Há outras coisas que são importantes e que farão parte do património das lutas emancipatórias. Uma das lutas com que a esquerda lidou mal no passado é a articulação entre o direito à diferença e o direito à igualdade. Eu acho que a nossa geração é mais sensível e está mais capaz de fazer essa articulação do que no passado.
Há uma outra questão que é essencial que é a questão da ecologia e do ambiente, a destruição ambiental. E isto toca no fundo do capitalismo, na regra do funcionamento do capitalismo que é a criação do lucro. O planeta e a sobrevivência do planeta é contra isto. São por isso princípios contraditórios. Isto coloca-nos uma questão de fundo que é ou achamos que queremos continuar a viver sob essa regra do lucro ou se queremos responder de outra forma. Para resolver a fundo precisamos de viver num mundo em que as pessoas ou empresas não sejam premiadas ao fim de um mês por terem destruído mais o planeta.

Quando chegares a um cargo de poder virás cá abaixo?

Como te disse, o poder só vale a pena no sentido em que seja capacidade de transformação. Uma pessoa que vai para o poder e que não leva à prática nada daquilo em que acredita então não tem poder nenhum. Para isso não vale a pena! Há uma música do José Mário Branco cuja a ideia é: as pessoas vão sendo consumidas por ilusão de poder e na verdade não transformam nada. A luta pelo poder é uma luta de transformação da sociedade. Quando nós estamos num cargo de representação, nós estamos abaixo das pessoas que representamos. Quem deveria mandar no deputado é o povo e portanto ele está abaixo do povo. Por isso é que a rotação é importante, quem está no poder a fazer um mau trabalho deveria sair de lá.


nota editorial: esta entrevista foi feita em Agosto, mas por razões de tempo não foi possível editar antes este material jornalístico.

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