21.6.07

A Entranhável Transparência




Entrevista com Lurdes Domingues, militante social.


Marquei a entrevista com Lurdes Domingues no seu espaço: o sindicato. Edifício debruçado na Praça da República, com as melhores mobílias dos anos sessenta. Uns minutos mais tarde chegava a protagonista desta entrevista com a sua conhecida boina basca.
Uma mulher de armas, que começou a lutar por um mundo melhor nass pequenas coisas. Chegou ao Sindicato dos Trabalhadores da Saúde, Solidariedade e Segurança Social, porque ganhou consciência das injustiças que estava a ser vítima.
Foi como as cerejas. A partir daí envolveu-se no activismo social e hoje, colabora com diversas organizações na cidade do Porto. Tem um caderno para cada uma delas. Ali aponta todas as informações das muitas reuniões semanais que a ocupam.
Nunca casou e só tem tempo para namorar ao Domingo. Natural de Ramalde no Porto. Seria capaz de correr o país por uma nova causa.



Nós conhecemo-nos de forma muito diferente. Conheci-te numa organização que luta pelos interesses e direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero), mas percebi, mais tarde, que fazias parte de mais organizações. A que organizações é que pertences?

Mais activamente faço parte de duas que é o Sindicato (STSSSS), sou dirigente sindical e sou associada da UMAR, União de Mulheres Alternativa e Resposta.
Faço parte, também, neste momento, do GRIP (Grupo de Reflexão e Intervenção do Porto), que é uma associação que está mais ligada à intervenção local, em termos da educação para a população juvenil. E trabalho em todas as associações que pedem colaboração. Mas não sou associada de todas!

Como é que tu tens tempo para tudo isso?

(Risos) Primeiro tenho que fazer bem a minha agenda, tenho que marcar bem as coisas, algumas sobrepõem-se, é verdade. Ah, esqueci-me! Também faço parte de uma associação que é o Núcleo de Centros de Saúde de Aldoar. Essas reuniões são uma vez por mês. Pronto isto é fácil. Normalmente todas as organizações reúnem uma vez por mês e tem-se um dia fixo para isso. Isso é importante por causa da agenda e quando há actividades não vou tanto, não participo tanto. Mas tento sempre estar, não faltar!

Vamos voltar um pouco atrás na tua história. Como é que tu chegas ao activismo?

Eu acabei o liceu em 79, comecei a estudar à noite, porque entretanto, por questões familiares vi-me obrigada, entre aspas, a ter que trabalhar. Fui para um emprego onde trabalhei com umas pessoas muito importantes, mas não vou dizer o nome, depois tive a trabalhar numa farmácia e, depois, iniciei-me no local de trabalho onde estou hoje.

Que é?

Que é o Lar do Calvário-Carvalhido.

Pertence a quem esse lar?

Pertence à Igreja. É uma instituição privada de solidariedade social.
Entretanto as coisas alteraram-se um pouco, porque a verdadeira razão, que me trouxe à militância foi, precisamente, aquilo pelo que passei. Eu estive imensos anos nesta instituição a trabalhar imensas horas, a ser explorada. Havia um tratamento diferenciado. Eu não estava habituada a esse tipo de tratamento. A minha família é uma família tradicional, conservadora, mas eu sempre achei que as coisas não deveriam ser assim. Comecei a lutar e a trabalhar para que as coisas se alterassem, nas pequenas coisas do dia-a-dia.
Quando tomei mesmo consciência de que devia lutar, foi quando soube que o salário mínimo na altura era de 7 contos e quinhentos e eu estava a ganhar dois contos, por mês . Trabalhava das sete da manhã, até às nove da noite com um quarto de hora para almoço. Isto durante três anos e meio quatro.

Pronto a partir daí vim saber dos meus direitos, porque eu não aguentava mais. Quando adquiri o meu posto de trabalho, passei a efectiva, aí comecei a lutar pelos direitos dentro da instituição.
Aqui temos de fazer uma nota. Não nos podemos esquecer da época e do contexto, de que como as coisas eram na época. Aquilo era uma instituição muito fechada. Aquilo é uma IPSS (instituição privada de solidariedade social), ou seja, não é de ninguém, mas pertence a uma paróquia, à paróquia do Carvalhido. Em última análise era, e é, uma coisa de todos. Não era do Sr. Padre, nem era meu, era de todos. Nem era do Sr. Engenheiro, nem do Sr. Doutor! Concluindo. Administrativamente aquilo tinha uma hierarquia, mas a forma de funcionamento estava errada.

Tiveste resistências nessas mudanças que quiseste propor?

Sim. Primeiro tive de saber a que sindicato pertencia. Fui ao da função pública, mas não era o adequado ao sector onde eu estava.

Qual é o sector?

Instituições Privadas de Solidariedade Social. Mas havia um problema. Como este sector é maioritariamente de mulheres e continua a ser, continua-se a ganhar o salário mínimo nacional, continuam-se a fazer horários muito prolongados. Usa-se o termo voluntariado, boa-vontade, caridade de uma forma abusiva. Eu arranjei o meu sindicato.

Como é que estás hoje nesse emprego?

Estou arrumada na prateleira. A partir do momento em que tu defendes os teus direitos, lutas por determinado bem comum não és visto com bons olhos. As coisas neste momento estão um pouco paradas, porque eu tive um grave problema de saúde. Já não tenho aquela resistência que devia de ter. Aqui a questão da unidade entre as pessoas foi muito complicado. Ao início as colegas nem sequer queriam colaborar. Mas depois lá começaram a acordar.

Partiste da tua situação concreta. Não tinhas nenhum passado político-partidário?

Não. Comecei a ver que era impensável continuar a ganhar aquilo que ganhava, naquelas condições. Ainda hoje eu ganho 409 Euros, que é o salário mínimo nacional, mas há uma diminuição em termos de carga horária.

Ganhaste consciência da injustiça pelo teu passado católico Lurdes? Terá sido isso?

Exactamente. No tempo da minha adolescência até fui catequista. Até tirei o Curso Geral de Catequese durante três anos. A minha consciência política veio da religião, veio da igreja. Então se eu ia à missa todos os domingos, ouvia a homilia que os padres preparavam, o evangelho era uma coisa e o sermão era outra. Às vezes eu sentia contradições. Isso levava-me a reflectir. Sempre fui uma pessoa que pensa muito nas coisas.

Não deixaste a Igreja?

Neste momento se me perguntares se sou católica eu repondo que sou sou católica, porque fui baptizada. Mas eu sou cristã. Ser católico e cristão é diferente. Ser cristão amplia, não coarcta a tua maneira de olhar o outro. Por outro lado, o católico faz um lobbizinho e isso sente-se, em termos sociais.
Não se pode comparar um padre com Jesus Cristo. Jesus Cristo foi um actor social, uma pessoa que se empenhou no social e lutou contra o império romano, um padre neste momento não luta contra nada. Alguns padres tiveram um papel importante no Estado Novo, mas neste momento. Agora é só imagem e estatuto.

Continuas a ver injustiças hoje, como aquelas de que foste vítima há 29 anos?

Sim, mas de uma forma mais subtil, mais diplomática. Se calhar menos dolorosa, mas as marcas ficam. Essas pessoas às vezes não têm noção. As novas oportunidades, que estão a passar na televisão... passo-me dos carretos com aquilo! Eles não valorizam o trabalho, mas tu vais trabalhar para um sítio porque tens vontade, mas sobretudo, vais para ganhar um pecúlio, teres dinheiro para vivere. Tu crias essa expectativa, mas depois, não sais do salário baixo e desmotivas-te.

Qual é a tua função actual no teu trabalho, lá no lar?

Olha… já fui muitas coisas. Quando eu comecei aquilo era para pessoas em estado terminal. Na altura o lar não tinha muitas condições e estava a ser gerido por “irmãs” com uma avançada idade, portanto não estavam dentro das melhores práticas de cuidados paliativos. Isso mexeu muito comigo. As pessoas idosas chegam a uma altura em que estão muito velhas e sofrem. (emoção contida)

E tu sofres com elas?

Eu sofro muito. As pessoas estão ali a gemer. É por isso que eu sou a favor da eutanásia, sabes. Quando as pessoas pessoas não têm qualidade de vida nenhuma… desculpa…
(interrompe-se a entrevista por uns minutos)
Deixei os pisos. Não conseguia. Fui para a lavandaria, mas depois de adoecer, como não posso fazer esforços, fiquei nas costuras, na rouparia.
A instituição não encontrou nada mais adequado. Continuo com a minha categoria, que é lavadeira.

Como é que chegas à UMAR? (União de Mulheres Alternativa e Resposta)

Eu chego à UMAR por causa do meu trabalho. Porque eu trabalho com mulheres. Enquanto andava no liceu eu dava-me bem com toda a gente, quer com raparigas, quer com rapazes. O meu relacionamento com os rapazes era ligeiramente mais tímido. Mas no final da adolescência, entendia-me melhor com rapazes do que com raparigas. Às vezes eu tinha dificuldades em comunicar com raparigas, não sei.
Fui para a UMAR, quando comecei neste trabalho. Fui para o meio de mulheres e para o meio de freiras, precisava de as entender, não é?
Ainda hoje mantenho a ideia de que as mulheres são assim, porque o ambiente masculino que têm em casa é altamente legitimado. Agora está-se a mudar, sobretudo no campo das tarefas.

Nunca casaste?

Não nunca. Nunca casei, porque sou muito independente. E nunca gostei que me atirassem coisas à cara. Depois vêm as expectativas, porque eu ainda não ganhei dinheiro para me casar como eu queria, por isso, não me caso. Além disso sou muito alérgica à palavra casamento. Assusta-me.

Como é que olhas para as mulheres depois de teres ido para a UMAR?

Continuo a achar que muitas das mulheres são fúteis. Eu quero lá saber o que os outros têm e vestem. A mim interessa-me pouco. Depois sempre detestei a expressão “à caça de um bom partido”, porque algumas mulheres têm a mentalidade de sair de casa para ter maior conforto, sem ter de se mexer uma palha. Noto que se está a registar uma inversão de marcha. As mulheres estão a voltar para casa, para serem uma “boneca” dos homens. Não acho isso mal, se as pessoas se gostam, mas quando passa o exagero e fica muito visível. Isso é mau!
No início, até tinha aversão à palavra feminista, pensava que eram muito radicais, mas agora acho que todas devemos ser mais amigas. Comecei a entrar e a ler e acho que no fundo todas as mulheres são feministas.

Defendeste alguma colega tua?

Lembro-me, que as minhas colegas de trabalho, muitas delas, eram vítimas de violência doméstica. E escondiam isso. Eu tentava que elas tomassem consciência que estavam em situação de igualdade. Cheguei a presenciar um valente “estaladão” à porta do meu trabalho só, porque a minha colega bebeu o copo de leite, que tinha preparado para o marido de manhã. Ele não tinha gostado. Estás a ver isto! Ela entrou a chorar, eu, saí cá fora e ainda lhe disse: - ouça lá! Mas isto faz-se?


Gostava que me falasses de outro assunto que eu acho delicioso. Tu colaboras com uma data de associações LGBT, mas tu não és lésbica?

Não, não sou.

Como é que te vês nesse mundo. Tiveste que aprender algumas coisas?

Quando foi o fórum social português em Lisboa eu fui a alguns painéis relacionados com o movimento e as lutas LGBT.
Eu conhecia pessoas já, mas para mim era um tema tabu. Eu não gosto de ferir, de fazer perguntas com determinado tipo de intenção. O meu problema era, que eu já tinha sido abordada por uma mulher. E na altura até fiquei com medo, lembro-me disso. Disse-lhe: - desculpa lá, mas não gosto de pessoas do mesmo sexo! Mas agora dou-me conta que essa pessoa era um pouco obsessiva.
Bem, mas em Lisboa foi uma experiência muito interessante. Ouvi o Sérgio Vitorino, Paulo Corte Real, a Fabíola. A UMAR entretanto percebeu que necessitava de dialogar e a fazer com pessoas LGBT, que eu no início nem sabia o que era. Então em Lisboa disseram-me que eu podia fazer esse trabalho. E eu disse: “Eu!”
Comecei a envolver-me e, agora, estou com o GRIP, as Panteras e o Clube Safo. Parecia tudo muito erudito, mas agora estou a aprender muito.

Achas que as pessoas se deviam dedicar mais ao activismo?

Acho que sim. Muitas vezes este tipo de percurso é mais importante. Estar em organizações não governamentais, em partidos ou até em sindicatos aprende-se muito mais do que numa universidade ou num liceu.
nota editorial:
Esta entrevista durou cerca de duas horas. Tive, por questões de espaço de editar o mais possível. Prometo contudo, voltar à história de Lurdes mais tarde.

15.6.07

A energia do Amarelo


Entrevista com Luciano Amarelo, intérprete, criador.


Nesse dia, choveu a cântaros. Seria normal se estivéssemos num daqueles invernos do Porto, onde não pára de chover. Mas não, em pleno Junho, desejando sol encontrei-me com um dos intérpretes e criadores mais completos da nossa praça.
Luciano José de Sousa Amarelo, mais vulgarmente conhecido no meio como “o Amarelo”. Como somos da mesma idade a informalidade por tu, presta-se essencial. Fundador do Teatro Bruto e de outras companhias define-se como intérprete e criador. Pluridisciplinar, faz dança, teatro, clown, desenho de luz, figurinos... Agora está a experimentar a encenação. Não se sabe de onde vem esta energia.
Há muito que tinha vontade de falar com ele.


Vamos começar pela tua chegada ao Porto. Como é que vens cá parar?

Vim da Guarda, com quinze anos para estudar na Academia Contemporânea do Espectáculo (no Porto). Na altura andava na orientação vocacional e tanto no quinto ano, como no nono, os resultados orientavam-me para o teatro. Eu não tinha tido qualquer tipo de contacto com o teatro a não ser na escola, mas sem nunca ter feito nada. Sugeriram-me escolas profissionais e uma delas era a Academia. Disseram-me - “tenta esta, que é uma escola nova”!
Foi um pouco complicado, porque as escolas profissionais não tinham vinculação e eu estava com um pouco de medo. De todas as formas vim cá. A escola tinha dois anos de existência, eu entrei no terceiro ano de vida da escola. Fiz as provas, fiquei. Depois vim para aqui e mudei completamente a minha vida, porque comecei a viver sozinho no Porto e pela primeira vez. Assustou-me no início, porque até aos dez anos eu tinha vivido numa aldeia e dos dez aos quinze tinha estado na Guarda, por isso, ter de deixar a família e viver numa cidade nova é difícil, não é?

E depois? Acabaste a Academia e ficaste pelo Porto?

Até ao final do curso fiquei pelo Porto a acabar a chamada PAP (Prova de Aptidão Profissional), foi aí que fundamos o Teatro Bruto, que correu muito bem e fez com que, no fundo, quiséssemos continuar a trabalhar como companhia.
No início os apoios eram só da Câmara, que eram apoios muito pequenos, na prática trabalhávamos de borla, mas pouco a pouco, com persistência começamos a ter apoio dos “Pontuais” (subsídios à criação artística), do antigo Ministério da Cultura, actual I. A. (Instituto das Artes), depois recebemos os plurianual, bianual e agora somos a companhia que menos recebe no Porto. Eles têm mantido a mesma quantia, o que quer dizer que desce o nosso poder, porque o nível de vida sobe.

Então começas com o teatro, mas no teu percurso começas a descobrir o movimento?

Eu descobri a dança, também no teatro, na escola e, na altura era um dos melhores alunos e de repente, percebi, que mexer-me era a maneira mais fácil que eu tinha de chegar às pessoas. Surgiu ter uma formação com uma professora da Lecoq (Escola Internacional de Teatro Jaques Lecoq) chamada Sandra MladenoviČ (ainda na Academia), que me aconselhou a ir para lá. Já tinha ouvido falar da escola, que era para actores e encenadores, mas com uma componente física muito forte.

Em Paris.

Em Paris. Consegui uma bolsa da escola, não para o ano que eu queria, por isso fui para Londres, quatro meses, para uma escola muito má (risos). Consegui a bolsa e cheguei lá e percebi, que aquilo era muito complicado, pois de três turmas que entravam só ficava uma turma para o segundo ano, portanto havia uma selecção muito criteriosa. Só ficavam um terço das pessoas. Eu tive a sorte de ficar com mais uma colega da Academia a Sandra Salomé, com quem fiz a escola.

Quanto tempo é que estiveste em Paris?

Dois anos seguidos, em 97 e 98. Daí voltei ao Porto, ao Teatro Bruto, mas mais num regime de colaborador externo. Dava algumas dicas quanto ao trabalho corporal, bem como o apoio ao movimento ou como assistente de encenação. A escola foi muito importante, porque abriu imenso o meu leque de trabalho. Descobri que podia dançar. Comecei a criar pontes com a dança e também na criação, porque é uma escola muito forte nessa área.
No meio disto tudo foi muito estranho, porque fiquei para o segundo ano, foi mais um ano fora do Porto. No final fui convidado para fazer uma audição onde fiquei. Tinha que decidir. Ficava de fora do Teatro Bruto mais um tempo, ou ficava em França. Decidi ficar em França e fazer o trabalho (“Butterfly Blues” 1999) de dança-teatro, que durou dois anos. Ia e voltava, durante o tempo da itinerância. Isto fez com que eu começasse a trabalhar com outras companhias e de repente, percebi que mais se aprende mudando de criador ou quem nos dirige. Apanhas as maneiras diferentes com que cada pessoa trabalha, conheces o meio e entendes o que é que é preciso mudar.
Quando cheguei a Portugal senti-me completamente frustrado, porque depois da formação que tive, dos espectáculos que vi e fiz e dos convites que me fizeram e eu recusei, deparava-me com um certo provincianismo.

Os Circolando já andavam por aí?

Os Circolando aparecem mais tarde. Na altura também estava a conhecer as pessoas dos Circolando, como a Luísa Moreira (ex-produtora) e iríamos fazer um grupo nós. Mas o que aconteceu foi eu mais a minha colega, convidamos um ex-professor nosso da Lecoq (André Riot-Sarcey) ligado a uma companhia de clown (Les nouveaux Nez) e apresentamos um espectáculo à capital Europeia da Cultura. Foi uma das duas produções nacionais de novo circo na época, os Circolando e este projecto chamado “Quiero-Quiero”, que era um espectáculo clownesco e musical.

Essa foi a oportunidade de trazer aquela mais valia que eu queria. Abrimos um workshop-audição, uma coisa aberta. O encenador, no final, escolheu as pessoas para o espectáculo.

Porque é que não ficaste em Paris?
Pois, acho que é por causa desta coisa de eu me sentir português, sentir que pertenço aqui. A nível artístico estava triste por não estar com o Teatro Bruto, porque estava a começar e pouco a pouco, ia saindo, mas tinha vontade de voltar.
Eu entrei como actor somente nos primeiros dois espectáculos, nos seguintes quando chegava não entrava a tempo de integrar o processo desde o início.
Apesar de aqui ser muito difícil trabalhar?

Sim. Eu agora brinco. Digo que vou fazer um curso de jardineiro. Dou-me melhor com as plantas. Elas percebem-me melhor e eu a elas. Ou seja, cansa-me, porque o estatuto do artista não existe, fala-se que vão tentar melhorar, mas não se faz nada, a cultura não é uma coisa importante, neste momento, em Portugal. O Rivoli entretanto fechou e ao fechar deixou-se de ver espectáculos de novo circo. Os últimos melhores que eu vi foi lá. De repente fecha também a sala para as pequenas companhias, as outras companhias que têm um espaço ou estruturas alugam os espaços muito caros com o argumento que não têm dinheiro. Estamos a entrar num ciclo vicioso, em que não dá para fazer nada. Mas o teatro é a última coisa que as pessoas nos podem tirar, nem que a gente faça teatro na rua.

E vão sair à rua?

Já estivemos para fechar portas três vezes (Teatro Bruto). Isso é que é um cansaço contínuo. Nós tivemos as reuniões com o I.A. (Instituto das Artes) para pedir apoios, disseram-nos que não era possível e nós dissemos que não era possível continuar se não fechávamos portas e a resposta foi - "Então, fechem!"
Os actores não recebem, as pessoas da produção recebem, porque ainda temos uma estrutura. Estamos aqui e não podemos fazer nada e isto passa ao lado de muita gente. Só resistimos, porque tivemos um mecenas e porque acreditamos no nosso projecto.
Parece haver uma crise, em que as próprias pessoas do meio já não vêem o trabalho dos colegas e acho, que se tem estado a criar uma negatividade em toda a gente e de repente não sei o que se pode fazer.

Como é que foram os anos do Teatro Bruto até agora? Qual foi a última peça?

Agora foi “Vou mudar a cozinha” (direcção de Ana Luena, uma das fundadoras do Teatro Bruto). O Teatro Bruto organiza-se por ciclos, este ciclo esteve ligado ao tema da viagem, chama-se “Andamentos”, já com baixo orçamento, porque nós tínhamos cinco espectáculos, passaram para três e agora vamos em dois. O primeiro correu bem, numa época em que havia muita coisa a acontecer no Porto, no mês de Maio, mas correu bem. O próximo é uma co-produção com o Festival de Marionetas do Porto e vou dirigir um espectáculo de marionetas, ou seja, a ideia do Teatro Bruto é ir cada vez mais para uma perspectiva pluri-disciplinar. Já não somos uma companhia só de teatro. (espectáculo “Corações em Ferrugem”, estreia em Setembro)

Vocês saíram de uma escola e estão sempre à procura é isso?

Neste momento apostamos mais nas pessoas da companhia, sem nos fecharmos ao meio artístico, porque nós sempre convidamos elementos exteriores, que é uma coisa que poucas pessoas fazem, acreditar nelas e se possível renovar o convite. Agora, neste momento, é durar até ao final do ano, está muito mau com o dinheiro.

Como é que foi trabalhar com esses outros criadores?

O Teatro Bruto é muito peculiar. Começamos como um projecto bruto, de Teatro Bruto, porque era um projecto mais ligado ao lado ritual, ao lado etnográfico, antropológico e de pesquisa, nunca usamos espaços e textos convencionais. Depois, houve uma fase em que trabalhamos muito a nível estético tanto a luz, como o som, como o vídeo. Houve uma altura em que se explorou muito as “primárias” (exploraram as cores primárias como base de criação), era o lado plástico da companhia.
Ultimamente, precisávamos mais de um teatro em e que o actor, personagem física voltasse a ressurgir. Aí continuamos a convidar encenadores exteriores ao projecto, porque o Teatro Bruto propõe um projecto base ou um tema a trabalhar pelo encenador convidado. Tentamos sempre impor uma marca ao encenador que vem. Claro que é sempre complicado, porque o encenador traz sempre alguma coisa na bagagem. Neste diálogo e ao fim de dez anos percebemos que nós, como criadores, também temos algo para dar. E é isso que temos feito.

Como é que foi para ti seres encenador?

Espera, antes tenho que te dizer que como criador comecei a trabalhar na área da performance e da dança, ou seja como criador, intérprete. Como encenador, encenador, depois de algum tempo no apoio ao movimento, assistente de encenação começou com o “Projéctil”, um novo projecto na Guarda. Convidaram-me para fazer parte de um núcleo duro, com quatro pessoas profissionais ligadas ao meio, que dirigem um projecto com a super-visão do Américo Rodrigues, que é o director do Teatro Municipal da Guarda.
Fiz uma primeira encenação (“E Ou diálogos”, de João Camilo) onde assino também a luz, os figurinos, ou seja, eu de repente, percebo que tenho que combater o meu medo. Eu sempre tive medo, sempre fui cobarde, porque sou um perfeccionista e, às vezes, prefiro não fazer, do que fazer mal, é um bocado estúpido! Mas depois deste desafio em que além de encenador, também entro como actor eu disse: - “se fazes isto tudo estás pronto”!
A outra encenação foi um convite do Teatro Universitário do Porto, que teve agora uma reposição e que teve grande visibilidade, que é o “Cara de Fogo”. Um espectáculo interessante, num espaço não convencional. Os actores eram mais do que as personagens e então deu-se um desdobramento das personagens. Uma das coisas que funcionou foram os espelhos no espaço, em que se dobravam as cenas. H
avia sempre um trabalho de multiplicação, não só dos papéis, mas também, do espaço e das cenas no espaço. E depois para cada tipo de trabalho, eu tento trabalhar de forma completamente diferente. Um espectáculo é uma coisa única.

Que autor gostas mais de ler?

Olha eu na Academia, quando descobri Becket, gostei muito, porque tem a ver com o meu universo. Eu acho que sou considero-me absurdo-poético. É contemporâneo, toca em temas como a morte, o amor, é universal, mas também teatral e tem um lado “clownesco” que é uma coisa que eu gosto de explorar.

O que é que a França te ofereceu artisticamente, que Portugal não oferece?

O trabalho específico, mas muito completo. Na Lecoq, por exemplo, as pessoas saem de lá, tanto fazem circo, como dança, trabalhos de clown, técnicas e estéticas teatrais desde o melodrama ao absurdo.

Aqui nas escolas isso não se aprende?

Isso não se aprende. Eu aprendi com essa professora da Lecoq uma técnica que são os bufões. Aprendi bem isso durante duas semanas.

O que é que são os bufões?

São corpos exagerados, em que tu exageras o teu corpo, crias um mundo grotesco com o teu próprio corpo. Os bufões são divindades, mas são como seres, que vêm à terra para gozar com a humanidade. Pegam em temas como a religião e gozam, fazem uma sátira sobre isso.
Há outras técnicas de máscara como a “Larvar” que é uma espécie de pré-mascara, não tem uma forma definida, está a evoluir para um estado mais definido, mas não chega lá. É uma larva de máscara. A partir disto entendes o acto de criar e podes escrever teatro. Estás lá para aprender, mas sobretudo para fazer e o acto teatral tem imensas regras. Lá, eu aprendi a ser prático.
Eu tenho dado formação e dizem-me que aprendem mais numa semana comigo do que em três anos de curso. Essa bagagem permitiu-me estar num acto constante de criar.


Nota Editorial:
Voltei a emcontrar-me com o Luciano para corrigir alguns erros e melhorar algumas referências no texto. Estava tudo muito confuso. É sempre a oportunidade para melhorar esta publicação.

8.6.07

À procura de Richard




Entrevista a Richard Zimler, escritor.

O dia era de sol. Para não chegar atrasado, acabei por ir uma hora antes. O ponto de encontro era na confeitaria Tavi e com o escritor norte-americano Richard Zimler. Com 51 anos, continua a apostar no romance histórico, narrativas de pessoas reais e inventadas.
Em Setembro próximo, sai o último romance "A Sétima Porta", uma história que nos leva a Berlim dos anos 30.
Começo este projecto de jornalismo mais pessoal pelo Richard, porque desde a última entrevista, em Lisboa, a propósito do livro "Goa ou o Guardião da Aurora", ficaram muitas questões por responder. Além disso, gosto imenso da escrita deste homem que trocou São Francisco pelo Porto. Uma entrevista, que pode dar a conhecer novos aspectos de um delicioso escritor empenhado em entender o presente através das histórias do passado.


Richard Zimler, está há dezasseis anos em Portugal. Já se sente português, depois de se ter nacionalizado? [Richard Zimler é cidadão português desde 2002].

Boa Pergunta. Sou cidadão português de facto, e como não há cidadãos portugueses de segunda, eu penso que sou um português como qualquer outro. Eu penso que sim, embora o conceito europeu de cidadania europeu ser completamente diferente do americano. Ou seja, nos Estados-Unidos um boliviano, um peruano que consegue a cidadania há cinco minutos é tão americano como George Bush, ou como alguém que vem da famílas do May Flowers, como os puritanos. Na Europa não é bem assim! Depende de quantas décadas e séculos a sua família viveu naquela cidade, ou naquela terra. Prova disso é o facto de eu não ser considerado um escritor português. Sou considerado um escritor estrangeiro, que é uma situação híbrida e curiosa para mim. Não sou pessoa de ficar chateado, mas tenho a nacionalidade portuguesa e não sou escritor português, porquê? Porque não escrevo em português? Então ser português tem a ver com a língua e não com a cidadania? Eu não concordo com isso.

Como é que chega a Portugal?

É muito fácil. Em 1978, em Dezembro, conheci um cientista português chamado Alexandre Quintanilha. Na altura ele estava a fazer um pós-doutoramento na Universidade da Califórnia e conheci-o num café de São- Francisco e, apaixonei-me por ele e ele, felizmente, apaixonou-se por mim. Desenvolvemos uma relação, que ainda hoje mantemos, depois de quase 29 anos. Aqui começa a minha ligação a Portugal, apesar de ele ter nascido em Moçambique.
Em 1989, um dos meus irmãos mais velhos faleceu com complicações de HIV-Sida. Eu tinha acompanhado a doença dele durante vários anos e nos últimos dois, as coisas começaram a ficar muito complicadas e difíceis. Quando ele morreu no dia 6, de Maio, de 89 eu fiquei bastante traumatizado. Não só por nós sermos muito íntimos, mas por haver uma sintonia de identidade com ele. Eu cresci com ele no mesmo quarto.
Quando ele morre eu começo mostrar alguns sintomas de doença mental. Por exemplo, lavava as mãos milhares de vezes ao dia, sintomas de stress. Eu tinha estado anos a lidar com a doença, com a família, os amigos, os médicos, no final, eu era o gerente do meu irmão.
Nessa altura o Alexandre disse-me que, se calhar era melhor a gente mudar para Portugal, para começar de novo, num sítio onde ninguém falasse de SIDA. Porque na Baía de são Francisco era impossível, porque foi lá que mais cedo se sentiu os efeitos da SIDA e havia uma nuvem estranha por cima da cabeça de toda a gente: heterossexual, homossexual, homem, mulher, pais filhos.
Mudamos em Agosto de 95, felizmente, para começar de novo.

E conseguiu, de facto, começar de novo?

Às vezes, eu digo que Portugal salvou-me a vida! Não era um gesto particular de uma qualquer pessoa em Portugal, era o facto de eu sair de uma situação insustentável, para um sítio, onde tudo estava mais ou menos calmo. A minha adaptação foi difícil, os primeiros anos foram muito difíceis. Ainda não estou completamente adaptado, por isso é que eu digo “entre aspas” que foi muito difícil o choque de culturas, relações pessoais com outras pessoas, em termos de trabalho, porque entretanto eu comecei a ensinar na Escola Superior de Jornalismo, ou seja, tudo isso ajudou-me a perceber (eu era muito provinciano, apesar de achar que não), que as pessoas de um outro país podiam pensar coisas completamente diferentes sobre as coisas mais profundas como a morte, a vida, solidariedade, tolerância, intolerância, crueldade, traição, amizade. Eu quando cheguei a Portugal eu não percebi logo as acções, os gestos, a maneira como eles lidavam com os colegas da escola, sobre tudo…

Disse até numa entrevista que o que mais o chocava era os portugueses não revelarem o seu intimo nas primeiras abordagens?

O português é muito mais fechado que o norte-americano, para melhor ou para pior, não estou a criticar. Mas isso fazia parte da minha maior dificuldade inicial. Na América as pessoas são muito informais, depois de o conhecerem vão-lhe dizer tudo sobre a vida, que ele tem herpes, que a mãe lhe está a chatear a cabeça, que perdeu o emprego e que quer um trabalho noutra coisa. Bom, ele vai contar tudo o que é muito chato, mas o português não diz nada, fala facilmente da arte, da política e do desporto, mas sobre o que ele pensa, o que está a sofrer, alegrias, paixões, não, disso não diz absolutamente nada. Penso que a próxima geração, as pessoas mais novas estejam a mudar.

Mais informais?

É, mas foi muito difícil, porque com a minha formação de norte-americano eu não consigo ainda hoje, estabelecer uma relação de amizade real, sem falar das minhas coisas intimas, e não estou a falar de sexo, estou a referir as dificuldades que eu tenho, as alegrias, as tristezas, de tudo. Eu não consigo falar de política e estabelecer uma relação íntima, ou de desporto, é impossível.
Em termos de relações superficiais também foi muito difícil, porque quando um picheleiro diz "sim", ele se calhar quer dizer "não". Ou seja, -“o senhor vai aparecer amanhã às nove para concertar a pia?”, e ele diz -“sim às nove da manhã estou lá”. Às nove ele não aparece, às dez eu ligo e ele está sem tempo e marca para o outro dia. Isso é uma coisa que para mim é incompreensível, eu não sabia lidar com isso, este fazer tudo em cima da hora.
Ainda hoje não consigo lidar com isso e por isso é que recuso trabalhar em equipa, porque eu sei que num grupo de seis pessoas, dois ou três vão meter água.

Nunca foi acusado de ter ficado menos americano, por estar a viver na Europa?

O que me acontece a mim é muito simples e isto pode suar pretensioso, não porque eu falo disto e daquilo, mas sim, por dar a minha opinião de uma forma que pode parecer bizarra.
Só para dar um exemplo, há uns anos queria fazer uma entrevista à Susan Sontag, uma grande pensadora americana, filosofa, péssima romancista, entre parêntesis. Estive com ela e achei as opiniões dela e as reacções dela, pelo menos em relação a mim de um provincianismo total. Ela tinha os preconceitos dos nova-iorquinos sobre tudo. Dos nova-iorquinos dali. Daquela gente sofisticada.
Eu pensei, esta Susan Sontag é uma provinciana. Ela fez-me uma coisa que é super nova-iorquina que é analisar a minha pergunta e as razões pelas quais eu fazia a pergunta. Todos os sítios têm estas coisas. Qualquer pessoa, por mais sofisticada que seja pode cair na ratoeira de ficar presa no seu meio.
São provincianas, porque não tiveram experiência no estrangeiro. Por isso é que eu digo a toda a gente, passa um ou dois anos no estrangeiro, porque vai com certeza mudar as tuas opiniões! Como a célebre frase do Bob Dilan “I was so much older than i´m jouger than that now! Quer dizer que sou mais jovem agora do que há vinte anos, porque tenho mais dúvidas.

É recorrente na sua literatura temas como as migrações, os êxodos, a viagem, sobretudo dos judeus, já terminou a sua fase sefardita?

Acho que não. Acabei de publicar em Inglaterra o quarto volume, daquilo a que se chama o ciclo sefardita, eu digo ciclo, porque não são sequelas, são sim portas onde qualquer leitor pode entrar.

Andam à volta de uma família, certo?

Sim, da família Zarco. O quarto chama-se “ A Sétima Porta” e o livro vai ser publicado em Portugal em Setembro. Não sei se vou escrever um quinto, mas acho que sim, porque o tema ainda me interessa.
Mas eu não cuido muito da minha carreira de forma estratégica, eu escrevo o que sou no momento, o que me apaixona, eu se quisesse ter tido mais sucesso eu planeava tudo e teria planeado tudo de novo e melhor, com uma estratégia comercial.

Diz que começa a escrever a partir do memento em que quer denunciar uma injustiça. É isso que acontece com este “A Sétima Porta”?

Sim. Eu sempre tive ideia, como área de abordagem no futuro escrever ou pesquisar, pelo menos, a esterilização e depois a matança de pessoas deficientes na Alemanha dos anos 30. Uma das primeiras coisas que os nazis fizeram depois da eleição de Hitler em Fevereiro de 33, foi passar leis sobre pessoas de genética inferior. Entre aspas, tudo entre aspas. E isso sempre me interessou muito, porque é sempre muito pouco falado, mas é uma chave para compreender, não só a estratégia dos nazis, mas uma certa mentalidade, que é ainda comum no nosso mundo. Eu sempre estive curioso em relação a este tema, mas eu não sabia muita coisa, tirando as histórias do holocausto.

A ideia é conhecer melhor a história de outros grupos, também eles vítimas do nazismo?

Exacto. Então fiz umas pesquisas e felizmente na última década foram publicados alguns livros muito bons, com alguns pormenores. Porque antes era muito difícil encontrar informações sobre surdos-mudos que foram eliminados, pessoas deformadas, pessoa com epilepsia, pessoas consideradas esquizofrénicas, débeis mentais, muitas vezes, autistas. Hoje em dia toda a gente sabe que uma pessoa autista pode ter uma vida independente. Fiz a pesquisa e comecei a escrever.
Então, o que ficou foi um romance sobre uma família, sobretudo uma jovem de catorze anos que se chama Sophie, que vive em Berlim, nos anos trinta e o que acontece a ela e a um irmão mais novo que é autista.

Foi uma experiência muito importante para mim, porque aprendi muito e consegui, penso eu, abordar um tema muito pouco falado.

Teve que ir a Berlim para fazer pesquisa?

Fui duas vezes a Berlim e consegui, graças à Internet, um guia de 1928, da cidade de Berlim, que tinha mapas e informações sobre hotéis e cafés e restaurantes e teatros. Então eu consegui andar em Berlim e ver no mapa o que estava lá há oitenta anos e o que está lá hoje. E há bairros que não mudaram nada. A família da história vive num bairro que se chama Prenzlauer Berg, que está tal e qual como estava nos anos 30.

Hoje é um bairro "trendy" de Berlim?

Muito engraçado isso. É um dos bairros "trendy". Eu estive lá em 90, logo após a queda do muro de Berlim e estava muito menos na moda e tinha um aspecto pós guerra, muito pobres os cafés, muitos edifícios estavam ainda destruídos. Hoje em dia está na moda. Gosto muito daquele bairro.

Qual é a rua da família da Sophie?

Ela vive na esquina entre Marienburger Strasse e Prenzlauer Allee.
Ainda restam zonas nas periferias do bairro onde vivem famílias que vivem lá há oitenta e tal anos, cem anos, com pequenas lojas, às vezes pirosas com coisas de leste, com preços baixos.
A Sophie vive lá com a família, a escola está ao lado e a Sinagoga está ali, a Reichstrasse Sinagogue, procurei andar por ali percorrendo quilómetros. Como assim os outros bairros, como a zona de Unten den Linden, que era o centro de Berlim nessa altura, a ilha dos museus.

A família é judaica?

Não é cristã, mas o pai começa o romance como comunista. A jovem Sophie também tem aqueles ideais, ela adora o pai, mas vai ficar desnorteada quando logo após a eleição de Hitler em 1933, muda de comunista para nacional-socialista, como centenas de milhares de comunistas, para preservar a vida, evidentemente.
De um momento para o outro o pai recomenda-lhes, vocês têm que esquecer tudo do passado. “Tudo do passado incluindo eu”, diz ela. Então é muito complicado para ela e o irmão e aí nasce o primeiro conflito do livro, porque ela, como quase toda a gente da Alemanha desse tempo, teve que desenvolver uma personalidade pública e uma privada. Ela não podia falar de política, nem com os pais! Então ela acaba por desenvolver uma relação com amigos e vizinhos, mas tudo tem de ser secreto, porque não pode falar disso com muita gente.

Berlim aparece como nova cidade nos seus romances? No último “À procura de Sana”, esteve em Haifa, Bolonha e Paris. Há alguma ligação com Portugal, neste romance?

Sim, desculpe. Eiseck, o vizinho dela, que é fantástico, é alfaiate, mas também místico, é muito amigo dela, é muito mais velho, desenvolvem uma amizade muito bonita, penso eu e ele é um Zarco. A família dele vinha de Istambul, o pai dele casou-se com uma alemã de Berlim, então ele fala um português mais ladino. Fala português, alemão, yidish, daí a sua relação com Portugal.

A sua profissão de professor ajuda-o na criatividade, na procura de novos personagens e situações?

Penso que não. A única coisa que me ajudou no jornalismo é que, como fui treinado para jornalista é um bom instrumento para escrever, e escrever muito e sinteticamente, e fazer pesquisa. Acho que é um bom pano de fundo para qualquer romancista.
A única coisa que me ajudou como professor é que comecei a ficar muito mais à vontade na frente das outras pessoas. Hoje em dia estar numa livraria, num teatro a fazer um discurso sobre a minha escrita ou o meu trabalho, não me põe nervoso.

Que significado é que têm os prémios literários?

Eu tenho poucos e não são muito importantes. É um encorajamento no fundo. Agora eu tenho 51 anos e não sou tão ingénuo como era e sei que muitos dos prémios têm a ver com situações políticas e pessoas que têm lobbys por detrás deles. Eu adorava ter mais prémios, mas nunca vou ter, porque não tenho nenhum lobby por trás de mim. Eu nunca seria apoiado pelo governo português, porque não sou considerado escritor português.
O escritor que não tem o apoio de um governo ou do Ministério da Cultura está posto de lado.

Mas o José Saramago não teve o apoio do governo português e chegou a Nobel?

Mas teve o apoio de uma entidade também poderosa como o partido comunista.
Não estou alinhado com nenhum partido, não quero. Eu não estou a dizer isto com qualquer amargura. Estou muito à vontade com a situação. Depois de alguns anos eu sei que o que acontece com alguns escritores tem a ver com o que acontece nos festivais de literatura.

Portanto não pretende alterar os seus ritmos pessoais?

Às vezes quando fico frustrado. O livro sai e vende bem, o livro sai e vende mal, eu fico frustrado. Se eu conhecesse o editor do New York Times, se eu conhecesse o editor do El País, meteria a cunha e teria mais vendas! Podia fazer mais um esforço para conhecer mais pessoas, ir a jantares nos festivais. Mas eu só tenho uma vida e tenho muito compromissos, tenho de escrever e por outro lado tenho o Alexandre.
Nós escritores, temos essa experiência, de ver os mesmos escritores nos festivais a fazerem graxa aos editores literários. Eles conseguem. Funciona muito bem.

Chamaram-lhe o Umberto Eco português?

Isso veio de uma resenha critica que saiu no Spectator, em Inglaterra, penso eu, um jornalista fez a comparação. Eu acho que “o Último Cabalista de Lisboa” foi publicado numa altura em que havia poucos romances históricos de qualidade e a referência era Umberto Eco, por causa do “Nome da Rosa”. Pela qualidade eu fui comparado, mas hoje em dia temos uma explosão de romances históricos. Eu fico lisonjeado, evidentemente, mas confesso que “O Último Cabalista de Lisboa” tem muito pouco que ver com o “Nome da Rosa”, para melhor e para pior.

Há alguma personagem que tenha vindo ter consigo mais tarde, depois de terminado o livro?

Sim. Bom, eu tenho uma vantagem em relação ao leitor, porque depois de fechar a última página infelizmente, tem de continuar a vida sem os personagens. Eu não, eu posso continuar a sonhar em “Meia-Noite”, que foi um personagem que me marcou muito, ou neste a “Sophie”. É uma vantagem, porque posso pensar o que é que o “Meia-Noite” diria nesta situação. Posso continuar a pensar que ele é um ser vivo.

Escreve originariamente em inglês, depois fazem-lhe a tradução para português?

Sim. Um tradutor profissional, escolhido pelo editor, faz a tradução. Eu faço uma revisão muito cuidadosa e também tenho um amigo meu, que faz uma revisão e a minha editora Maria Piedade Ferreira, faz uma revisão também. Temos três revisões, porque senão o livro sai com muitos pequenos erros e alguns erros grandes. Todos os livros que estão nas livrarias em que o tradutor não consultou o escritor e o escritor não domina a língua, saem com imensos erros. Então eu penso nos meus livros publicados em polaco ou em russo, meus deus!

Que escritor português gostaria de entrevistar?

Gostaria de voltar a entrevistar o Al Berto, numa viagem ao passado. Conheci o Al Berto em 1995, porque foi ele que foi escolhido pela minha editora para apresentar “O Último Cabalista de Lisboa” e fez uma apresentação magnífica. O meu português na altura não era tão bom e eu não aproveitei essa nossa relação. Eu perdi essa oportunidade pela minha timidez.

Que escritor americano gostaria de entrevistar?

Eu acho que seria muito interessante fazer uma entrevista a Philip Roth, não tanto pela literatura, mas sobre política.